Domingo, 23 de Setembro de 2007

"Mina Quiá II"

 

 

 

Já na cidade, no dia seguinte ao da comemoração da Festa da Nossa Senhora das Neves, dizem-me que a Feira de Ponto foi destruída numa madrugada, qualquer, anterior. Preparo-me, psicologicamente, para ver o cenário novo e ouvir a sensibilidade das pessoas, directa ou indirectamente, relacionadas com o fenómeno em causa. A primeira impressão que retenho é de um lugar que acabou de ser, sucessivamente, bombardeado na noite anterior. De facto, nada restou que inspirasse os retratistas a representarem a vida social intensa que se vivia naquele espaço público pouco recomendado por muitos. Para muitos acabou-se com o maior dos pecados que corroía o país. Dou meia volta pelo espaço circundante daquilo que ainda resta da referida feira e falo com três ou quatro anteriores feirantes. Um deles diz-me que lhe deitaram abaixo a barraca e, que, desde então, tem ido, reiteradamente, à Câmara de Água Grande para lhe facultarem um novo espaço para negócio mas não lhe resolvem o problema. No entanto, confessa que, já despediu quatro raparigas que trabalhavam consigo e não sabe como irá resolver a sua vida, a partir daí. Fico com a sensação que as instituições envolvidas resolveram o problema da Feira de Ponto com alguma irresponsabilidade, desorganização e amadorismo. Com a pressa e a obsessão de se bombardear o lugar mais infiel do reino esqueceu-se que ali trabalhavam pessoas, com responsabilidades familiares, algumas das quais sem outros meios de subsistência. Mais uma vez, aquelas pessoas que ficaram penduradas, sem um lugar para desenvolverem as suas actividades profissionais, no novo mercado ou noutro lugar, foram tratadas, pelo Estado, como “mina quiá”, pelo seu fraco poder económico, social e reivindicativo. Como os “mina quiá”, confiaram na boa fé de um Estado imparcial, protector e justo que lhes respondeu com parcialidade, desprezo, injustiça e desumanidade. O mesmo Estado que persegue e aterroriza a vida dos mais fracos, tratando-os como “mina quiás”; foge e ajoelha-se, perante os poderosos, num servilismo patético e envergonhador. Só assim se compreende a incoerência estatal perante atitudes e comportamentos, potencialmente indesejáveis e/ou ilegais.

 Temos um Estado que bombardeia a Feira de Ponto, numa madrugada, tratando alguns feirantes como terroristas; e, outro Estado que autoriza a construção de projectos turísticos, em cima do mar, em total desobediência com uma política, minimamente recomendável, de ponto de vista do ordenamento do território e impacto ambiental associado. Estão convencidíssimos que atentados ambientais e paisagísticos desta natureza, e outras, podem ser minimizáveis quando comparados com a ousadia popular de edificar e explorar a infiel Feira de Ponto.

Temos um Estado que aplaude ou assobia para o lado, quando confrontado com pressões, de um determinado grupo empresarial, sugerindo ou ameaçando os autóctones do Ilhéu das Rolas que o abandonem para, assim, aumentarem e melhorarem os seus objectivos empresariais naquela parcela do nosso território; e, outro Estado que atiça os “ninjas” perante desmandos, de pescadores ou palaiês, relacionados com um lugar para exercerem com dignidade profissional as suas actividades.

Temos um Estado que persegue, com fúria predadora, alguns automobilistas, em função do seu estatuto social ou económico e da marca e qualidade do carro que conduzem, tratando-os como “mina quiás”; e, outro Estado que promove o servilismo bacoco e honras militares, em prol da fartura e gordura de alguns homens de jipes e afins.

Temos um Estado que não hesita em deter, julgar e prender determinados “mina quiás” perante ilegalidades, maiores ou menores, perpetradas; e, outro Estado que se demite da função de inquirir ou julgar, os poderosos, perante ilegalidades ou crimes praticados por estes.

Temos um Estado que persegue, com tiques inquisitórios, os “mina quiás” que ousam apanhar ou pescar tartarugas para a sua sobrevivência, familiar ou profissional, em nome da protecção da espécie em causa; e, outro Estado que se prepara para estabelecer acordos, com uma potência económica estrangeira, em troca de muitos dólares, para introdução da prática de caça às baleias no país.

A minha maior angústia, no entanto, é que são os “mina quiás”, pressionadas pelo “Banho” e outras formas de humilhação social, económica e de cerceamento de liberdades individuais, que alimentam este monstro inerte que divide os Santomenses. É bom relembrar, todavia, que isto não é nenhuma novidade inaugural deste Estado concreto. As coisas sempre se passaram assim, com maior ou menor expressão, na nossa terra, desde a primeira república. Temos de ter fé e acreditar em Deus porque, nos Homens, é difícil continuar a fazê-lo.

 A.C 

publicado por adelino às 16:59
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Sábado, 15 de Setembro de 2007

"Mina Quiá"

 

 

Enquanto seguia no carro, com uns amigos, em direcção à Neves, para participar na festa da referida cidade, estes contavam-me, com uma sabedoria e graça contagiante, mais uma daquelas histórias, de grande significado social, que enchem o nosso quotidiano. Segundo os meus amigos, recentemente, um casal, de aproximadamente sessenta e poucos anos, adoptara uma “mina quiá” com o objectivo de lhe proporcionar uma vida melhor. Semanas, meses e anos, foram passando e aquela família, constituída pelo casal em causa e um filho adolescente, vivia, aparentemente, em paz e harmonia, cuidando com zelo, e capricho filantrópico inigualável, da sua querida “mina quiá”. Como os bons pintainhos, a referida “mina quiá” era alimentada com arroz e milho extraídos das próprias palmas das mãos dos seus dignos proprietários. O tempo foi-se passando e, alimentando-se desta forma e com este fervor patrimonial, a “mina quiá” foi se enchendo, estruturalmente, desafiando todos os vaticínios de uma dieta rica, do ponto de vista calórico. Mas algo não batia, totalmente, certo naquele corpo, da “mina quiá”, que pudesse ter, somente, explicações gastronómicas ou, mesmo, decorrentes de traços ou manifestações sexuais secundárias, próprias da adolescência. Aqueles seios e aquela barriguinha, em enchimento acelerado, denunciavam algo mais comprometedor para os proprietários da “mina quiá”, sobretudo para o seu representante masculino. Isto levou a dona de casa, que tinha um olho clínico inigualável para estas situações, a questionar a sua “mina quiá”: «Como é que você está a engordar assim?! Quê cuá!! Eu tenho que te levar para o médico… Isto não pode ser…» Tomada a decisão de levar a sua “mina quiá” para o médico e realizar análises clínicas complementares para descortinar a origem do enchimento acelerado da mesma, a sua proprietária entrou em estado de choque quando soube o resultado. Uma gravidez de três meses não poderia ser uma notícia agradável, para a proprietária da “mina quiá”, numa altura que, aquela, precisaria desta para o cumprimento de todo o tipo de tarefa doméstica. Mas o pior estava para vir. Tendo questionado a “mina quiá”, sobre a paternidade da referida gravidez, esta, instruída previamente pelo marido, informou-a que o responsável pela tamanha façanha seria o filho de ambos. Não é todos os dias que se perde uma “mina quiá” em idade de um autêntico caterpillar afinado. Por isso, a dona da “mina quiá”, tendo perdido a sua encomenda divina, transferiu a totalidade das suas energias e protesto para o seu filho, aparentemente, o responsável pela referida gravidez, castigando-o reiteradamente. Este, não aguentando a pressão, disparou, num momento inicial, que, seria, de facto, ele o responsável pela gravidez da “mina quiá” para, de seguida, desmentir totalmente, e, responsabilizar o pai pela façanha em causa, acusando-o de o ter pressionado a assumir a referida paternidade sendo, aquele, o responsável pelo referido acto. O pai, que assistia toda a cena com algum nervosismo, inquietação e irresponsabilidade, mijou e borrou completamente as calças entrando, de seguida, num estado temporal de pré-demência. A mãe desmaiou e só acordou, no dia seguinte, numa clínica privada dos arredores da capital. A “mina quiá” arrumou a sua trouxa calcorreou alguns quilómetros e instalou-se numa pequena barraca que o seu dono lhe começara a construir com o dinheiro que subtraía, diariamente, do quiosque “Afé Cu Deçu” que o referido casal explorava nas imediações da capital do país.

Entre gargalhadas, e boa disposição, que reinava no interior do carro, decorrentes das peripécias relacionadas com a referida história, fez-se, de repente, silêncio. Um batalhão de polícias, armados até aos dentes, no quartel policial de Guadalupe, enfileirados nos dois lados da estrada, espreitavam, sucessivamente, de forma indiscreta, para o interior de todos os carros que seguiam em direcção à Neves. Nunca tinha visto nada assim em parte alguma. Não sei qual é o critério que os referidos polícias utilizavam para mandar parar os carros na suposta operação STOP. Sei, no entanto, que seleccionavam, cirurgicamente, determinadas viaturas de acordo com a cara dos respectivos motoristas e qualidade das máquinas. À frente do carro onde íamos contei cinco jipes, de última geração, de marcas variadas, e uma carrinha. Todos passaram de forma tranquila, na referida operação STOP, entre acenos mútuos, dos polícias e respectivos proprietários. Quando a nossa viatura, um toyota ligeiro velhinho, se aproximou da referida coluna militar, um zeloso guarda inspeccionou, rapidamente, com um olhar predatório, os ocupantes da mesma, e, como que impelido por uma satisfação interior incontrolável, mandou-nos encostar disparando de seguida: «Livrete e carta de condução?! Luz?! Travão de mão?! Pisca-pisca de frente?! Pisca-pisca de traz?!» Felizmente o motorista que nos guiava, um grande amigo meu, respondeu, positivamente, às preocupações e exigências do zeloso guarda, tendo-se constatado, no entanto, que uma das lâmpadas do pisca-pisca traseiro não acendia. O insaciado predador, com cara de poucos amigos, mandou o meu amigo, motorista, acompanhá-lo ao referido posto policial que ficava do lado oposto onde estávamos parados. Tendo em conta o rumo dos acontecimentos e o comportamento discriminatório, insaciável e nada simpático, do referido guarda, juro que, temi que as coisas pudessem complicar para o meu amigo. Passado alguns minutos, no entanto, vejo-o descer as escadas do referido posto policial, e aproximar-se de nós, com um pequeno papel, ou convocatória, para comparecer no dia seguinte, no referido posto policial, para pagar um milhão de dobras pela referida contra-ordenação (uma das luzes do pisca-pisca que não acendia) informando-nos que o polícia que o interrogou pressionou-o ou sugeriu, reiteradamente, que deixasse qualquer quantia, por mais insignificante que fosse, que trouxesse consigo. Mais uma vez, eu não queria acreditar naquilo que ouvia. Não estou na posse de informação legal relacionada com o montante ou forma de pagamento de quantias decorrentes de contra-ordenações deste género, mas, este comportamento policial e referida quantia perecem-me um acto desproporcional, irracional e predatório sobre os cidadãos. É desejável e pertinente que os polícias realizem campanhas de operação STOP como forma de garantir a segurança rodoviária, de pessoas e bens, sobretudo num dia de festa com a amplitude desta. Mas por que razão o acto discriminatório, durante a referida operação STOP, sobre alguns cidadãos, em função da qualidade dos carros que conduzem ou da sua posição económica ou social? É desta forma que o Estado deve tratar os seus cidadãos? Quem garante aos zelosos polícias que aqueles senhores que seguiam em jipes, de última geração, eram portadores dos respectivos livretes e cartas de condução?

Nós que ríramos, desalmadamente, no trajecto até Guadalupe em torno das peripécias relacionadas com a história da “mina quiá” e seus donos, estávamos, de repente, transformados em “mina quiás” do Estado. Um Estado que promove a cultura de “mina quiá”, diferenciado comportamentos, relativamente aos seus cidadãos, em função da origem social ou económica dos mesmos, estará a cumprir a sua função na sociedade? Mas o pior estava, ainda, para vir. Chego à Neves e numa primeira incursão nos labirintos da referida cidade deparo com um carro das FARSTP sem os dois retrovisores, sem uma das portas, sem uma das caixilharias de todo o sistema de iluminação traseiro e outras anormalidades, mais ou menos visíveis. O carro circulava com toda a normalidade. Mais uma vez, não queria acreditar naquilo que via. Estava, no entanto, convencido que a surpresa terminara ai. Pura ilusão! Chego à cidade capital e, no dia seguinte, constato o mesmo tipo de insuficiências em dois carros da polícia nacional e no outro das FARSTP. Os dois carros da polícia nacional apresentavam deficiências claras no sistema de iluminação, traseiro e dianteiro, com retrovisores partidos e outras anormalidades que poderiam colocar em causa a segurança dos próprios polícias e da generalidade dos cidadãos que circulam na estrada. O carro das FARSTP apresentava, em substituição da tampa do depósito de combustível, um pedaço de pano parcialmente molhado. Agora pergunto: um Estado que não cumpre as suas obrigações, neste contexto concreto e outros, tem legitimidade e autoridade para reagir, da forma como o fez, perante contra-ordenações daquela grandeza praticada pelos seus cidadãos? Que grau de seriedade, responsabilidade e confiança, transmitem aqueles que, supostamente, deveriam ser os primeiros e os mais bem sucedidos cumpridores do edifício legal do país? Se quem faz as leis não as cumpre, quem as irá cumprir? É este o exemplo que o Estado dá aos seus cidadãos?

 

P.S: Continua, na próxima semana, o desenvolvimento do artigo em causa.

 A.C

 

 

publicado por adelino às 15:15
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