Segunda-feira, 28 de Maio de 2007

O rapaz, o velho, o burro e o "quase-Estado"

Falando com um amigo meu, de infância, ele dizia-me e fazia-me crer, com toda a convicção e uma extensa lista de argumentos contraditórios, que o problema mais grave do nosso país, momentaneamente, é o excesso de Estado. Segundo ele, o Estado tem de diminuir o seu peso nos diversos serviços e sistemas públicos, transferindo funções para a iniciativa privada. Eu não queria acreditar naquilo que ouvia mas, como tenho por hábito respeitar as opiniões alheias, por mais absurdas que me pareçam, fui ouvindo com atenção e alguma paciência o meu querido amigo. Ele destilava ódio contra o Estado: aquele monstro que consome energias; aquele gigante que gera desperdícios de enormes recursos financeiros na prossecução de políticas sociais, etc. Não era, no entanto, a primeira vez que ouvia uma aberração daquela grandeza. Existem, de facto, alguns intelectuais e políticos precoces nacionais, com a mesma visão messiânica. Também sei que estas tiradas avulsas fazem parte do receituário neoliberal, insuficientemente mastigado e absorvido pelo meu amigo e aquelas figuras, embora com grande popularidade e algum sucesso noutras latitudes. Todavia, questionei o meu amigo: «A que Estado te referes? Queres acabar com algo que não existe, como outrora um insuspeito professor de Direito caracterizou o nosso Estado; ou, em alternativa, com algo que existe de forma incipiente? Se é algo que não existe ou existe de forma frágil por que razão queres matar a criança?» Como calculam, o meu querido amigo, que, lera, sem qualquer criticismo, registos avulsos do sucesso das políticas neoliberais de Reagan e Margaret Thatcher, ficou completamente embaraçado com as questões que lhe apresentara, esboçando uma retirada semelhante aos machos perdedores, em contenda com os outros machos pelo controlo da fêmea.

Mais tarde, no consolo e ócio de um feriado concelhio, não deixei de continuar a pensar na perspectiva ideológica e conceptual, sobre o Estado, do meu querido amigo. Foi nesta altura que me lembrei da história sobre “O velho, o rapaz e o burro” que a minha avó, Maria Preta, me contara, em criança. Todos os leitores lembrar-se-ão, com certeza, da referida história. Era uma vez, um rapaz, um velho e um burro. Certo dia, em plena época das chuvas, quando os três se dirigiam para uma roça, muito longe, decidiram que o rapaz deveria ir no burro. Passaram, entretanto, por umas pessoas que sentiram-se indignadas com o facto e entendiam que era uma vergonha ir o rapaz no burro e o velho a pé. Sendo assim, o rapaz e o velho trocaram de posição passando o velho a ir no burro e o rapaz, a pé. De seguida, cruzaram-se com outras pessoas que entendiam que era uma vergonha ir o velho no burro e um rapazinho, tão novo, a pé. Sendo assim, pensaram e resolveram que seria melhor irem os dois, a pé. Ao passarem por outras pessoas, estas entendiam que era uma vergonha irem, os dois, a pé, quando tinham um burro. Então, o velho e o rapaz decidiram montar o burro. Entretanto, outras pessoas, mais à frente, acharam que era uma maldade irem duas pessoas em cima do pobre burro. Foi então que o velho e o rapaz decidiram e optaram por carregar o burro. Ao passarem por uma ponte, tropeçaram e o burro caiu ao rio e afogou-se. Este, parece-me ser o cenário metafórico, compatível com aquilo que entendemos, e interiorizamos, ser a função e essência do Estado na nossa sociedade. A forma do poder, na nossa terra, sobrepõe-se ao seu conteúdo. Assim sendo, passamos de um regime colonial para um paternalismo político, da primeira república, que odiava as liberdades individuais. Desta, saltamos, num ápice e acriticamente, para o caos da segunda república, convencidíssimos que os nossos problemas estariam sempre na forma e organização do Estado. Nunca, ninguém questionou com criticismo e aprofundamento exigente, o conteúdo e modus faciendi destes poderes do Estado. De ilusão em ilusão fomos fazendo um caminho de lateralização de responsabilidades tropeçando sistematicamente e, agora, corremos o risco de atirar o nosso “quase-Estado” para o rio. É isto que, ingenuamente, sugere o meu querido amigo. Não sei onde é que ele vê excesso de Estado, de ponto de vista conceptual e organizativo, se, a nossa maior maldição, nos últimos tempos, foi ter falhado, redondamente, na reconstrução do Estado. O que resta deste nosso “quase-Estado” é amordaçado, todos os dias, do ponto de vista da sua função, memória, organização, conteúdo e identidade. Só assim se compreende que: a maioria dos nossos partidos políticos concorra às eleições sem terem assegurado as condições adequadas e próprias para executar as acções inerentes à delegação do poder; o “banho” generalizou-se, de ponto de vista político-partidário, como factor essencial de legitimação eleitoral; mais de 60% da nossa população continua a viver em condições extremas de pobreza; os juízes recorrem, de forma generalizada, ao impedimento para não julgarem casos mais mediáticos de corrupção que envolvem figuras importantes do país; os golpes de Estado, e fenómenos afins de insubordinação, de quando em vez, espreitam oportunidades para fazerem ouvir a sua voz; uma ministra monta a sua banca, sobe ao púlpito e, numa confusão inusitada de papéis e funções, e gesto irreflectido de arruaça, chama todos os nomes ao líder da oposição que ousara criticar o seu governo; o Presidente da República, em funções, é eleito, em Congresso, para espanto do mais desatento cidadão nacional, presidente do partido que ajudou a formar.

Não admirem, pois, que o nosso “quase-Estado” vai ficando, cada vez mais, “quase-quase-Estado”. É bom salientar, contudo, que, para um país pequeno como o nosso com forte vocação para a personalização da vida política, os agentes das diversas instituições são a memória colectiva viva das instituições que representaram, revivida através dos seus estilos, mais ou menos marcantes e, que, a identidade das instituições é construída pela acção destes mesmos agentes, e, não decorre, somente, do seu estatuto e regimento jurídico. Não me admira nada, daqui por alguns anos, constatar a reprodução, por parte da nossa actual juventude, destes sinais, tiques e forma, do nosso actual “quase- Estado”. Ao contrário do meu amigo, acho que o país precisa de mais e melhor Estado.

 A.C

publicado por adelino às 17:31
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